Sméagol: o tênue limite entre o bem e o mal
Nós somos providos dos mais diversos sentimentos e eles podem ser bons
ou maus. Sméagol, personagem de J. R. R. Tolkien é a personificação de
nossos lados perverso e bondoso. Vivendo em um interminável conflito,
esta criatura tem muito a nos ensinar.
Creio que a maioria já conheça J. R. R. Tolkien e suas obras O Senhor dos Anéis e O Hobbit,
ambas com adaptação no cinema. Eu sou uma grande admiradora da(s)
história(s) por estar(em) repleta(s) de significados e aprendizados. O
autor é certeiro em muitos pontos e ao apreciar seus feitos a reflexão
ocorre inevitavelmente. E o personagem que mais causa este efeito em
mim é Sméagol.
Em uma breve descrição para aqueles que
não o conhecem, Sméagol é uma pequena criatura descendente da raça dos
hobbits e também é chamado de Gollum, pelo fato de ele emitir grunhidos
parecidos com esta palavra. Em uma pescaria com seu primo Déagol algo
que iria mudar drasticamente sua vida aconteceu: o anel de Sauron, o
Senhor das Trevas (o antagonista da obra), foi encontrado. Sméagol se
encantou de maneira instantânea pelo anel e foi capaz de matar o próprio
primo para ter a posse do objeto. O anel causava um fascínio tão grande
no jovem Sméagol que sua vida se voltou exclusivamente à ele. Gollum
passou a morar em um local sombrio e seu corpo mudou totalmente, se
tornando uma criatura grosseira e disforme.
No decorrer da história, Sméagol se
encontra com Bilbo Bolseiro, que pega o anel que caiu de sua roupa em um
momento de descuido e a saga de Gollum para ter o anel de volta para si
começa. O “precioso”, como ele o chama, tem vontade própria e deseja
retornar ao seu verdadeiro dono, Sauron, se utilizando assim de quem se
apropria dele. Ao mudar de mãos, o anel não precisa mais de Sméagol, que
é “descartado”. Porém, Gollum não considera este fato, ele é obcecado
pelo anel e o quer a todo custo. É a partir daí que Sméagol pode ser
melhor analisado.
Gollum é uma criatura solitária e
triste. O encantamento pelo anel foi a causa de sua destruição, de sua
miséria e isso faz dele um ser digno de pena. Bilbo, ao se apossar do
anel e descobrir que um dos seus poderes era deixa-lo invisível, teve a
oportunidade de observar Sméagol e viu nele a fraqueza e a angústia pela
perda do anel. Bilbo teve a chance de mata-lo naquele momento, mas teve
piedade; reconheceu o sofrimento e a solidão da pobre criatura e lhe
poupou a vida.
Um dos diálogos que mais gosto na obra é
o que ocorre entre Gandalf e Frodo nas ruínas de Moria sobre esse
episódio de Bilbo (a transcrição aqui feita é referente ao filme, já que
foi o meio pelo qual a história foi mais vista):
Frodo: Tem alguma coisa lá embaixo.
Gandalf: É o Gollum. (…) Está nos seguindo há três dias. (…) Ele odeia e ama o anel assim como odeia e ama a si mesmo. Nunca se libertará de sua necessidade do anel.
Frodo: É uma pena que Bilbo não tenha se livrado dele quando teve a chance.
Gandalf: Pena? Foi a pena que segurou a mão de Bilbo. Muitos que vivem merecem morrer e alguns que morrem merecem viver. Pode resolver essa situação, Frodo? Não seja tão apressado em julgar os outros. Nem os mais sábios conseguem ver o quadro todo. Meu coração me diz que Gollum ainda tem um papel a cumprir para o bem e para o mal antes do final da história. A piedade de Bilbo pode governar o destino de muitos.
E, a partir deste trecho, chego ao ponto
principal da minha reflexão, que é a dualidade presente em Sméagol: o
bem e o mal. Confesso que, a princípio, vi Gollum como um mero bipolar,
como alguém que mudava de humor repentinamente. Entretanto, como era de
se esperar, percebi o engano que cometi: Smeágol não era um personagem
bipolar, Smeágol é a leal representação do ser humano e das inquietudes
causadas pela dicotomia entre o bem e o mal.
“É o bem contra o mal, e você, de que lado está?”, este questionamento é de Renato Russo na música 1965 Duas Tribos) e
a minha resposta é: depende. Em uma analogia “geográfica” podemos
conceber o bem e o mal como o Sul e o Norte do planeta, onde o Equador é
o marco limitante entre ambos. Não há muitos vivendo na linha do
Equador; o que há, na verdade, são muitos que transitam de um lado para o
outro, do Norte para o Sul e vice-versa, se estabelecendo em alguns
momentos de suas vidas em um dos hemisférios. Ou seja, o equilíbrio
entre o bem e o mal não é facilmente alcançado e estamos constantemente
trafegando de um polo a outro, nos fixando a um deles em determinadas
situações. Ninguém é bom ou mal integralmente, temos ambos dentro de nós
e Sméagol é a personificação desta concepção.
Gollum tem uma característica pessoal
que demonstra bem a dualidade: ora ele fala no plural, ora ele fala como
se estivesse conversando com outra pessoa. Quando ele fala no plural
está se referindo a ele e ao anel, quando fala com outra pessoa está
tendo uma conversa, de fato, entre suas duas personalidades, seus lados
bom e mau. Neste último caso é visível que o personagem vive em eterno
conflito consigo mesmo, o que é bastante familiar para nós, meros
mortais, não é verdade? O trecho abaixo, também entre os meus favoritos,
mostra claramente esta particularidade de Sméagol:
Às vezes eu me sinto como o Sméagol,
lutando internamente contra os dois polos de mim mesma. Eu me pego com
pensamentos maldosos, o que me causa estranheza e muita tristeza, e logo
me advirto. Por mais alheia que a pessoa seja à maldade, esta está
presente dentro dela. Quando alguém nos causa dano, como no caso de
Sméagol, que se sentiu lesado pela perda do anel, aparece em nós um
sentimento de revolta, de vingança. Mesmo que não queiramos causar mal
físico ou psicológico ao outro, o “simples” desejar o mal a ele, mesmo que de forma inconsciente, já configura este lado perverso que todos possuímos.
Através do vídeo acima colocado vemos
que Gollum tenta se livrar de seu lado mau. Ele tenta expulsá-lo de si
e, por um momento, acredita que conseguiu tal proeza. A alegria que ele
sente ao desarraigar, naquela ocasião, o mau de seu corpo é, no mínimo, comovente. Percebe-se o esforço que ele faz para ser alguém diferente do que ele é, alguém menos dependente do que lhe traz padecimento, o anel. Sméagol sabe que o seu precioso lhe faz mal e que seu desejo insaciável
por ele é a razão de sua desprezível vida. Somos assim também, não?
Temos nossas ambições, nossas ganâncias, sabemos que elas são ruins e
tentamos, na maioria vezes sem êxito, excluí-las de nossas existências.
Mas, de onde vem o bem e o mal? O mais
provável é que venha do discernimento que temos do que é certo e do que é
errado, sendo o bem ligado ao primeiro e o mal ao segundo. Isto não
quer dizer que algo tido como certo ou justo pela sociedade vá
necessariamente corresponder às minhas expectativas do que considero
como bom. São conceitos relativos, mas com um consenso moral. Enfim…
Na história de Sméagol não há apenas a
predominância de seu lado mau. Frodo, que no início lamentou o fato de
seu tio Bilbo não tê-lo matado, passou a enxerga-lo com compaixão, pois
viu nele um ser confuso e perdido que possuía um lado bom escondido.
Afinal, Sméagol já tinha passado por todo o pesar que o anel proporciona
a quem o tem. Frodo finalmente compreendeu, mesmo que de modo limitado,
a dicotomia de Gollum.
Sméagol foi vencido, infelizmente, pela sua ganância pelo precioso. A fixação pelo anel o levou até a última consequência: a morte. Eu acho confortante, embora muito trágico, o fato de Gollum ter morrido na companhia do anel. No fim das contas, o anel era a única motivação de sua existência, não havia “reabilitação” para ele. Este era o seu inevitável desfecho.
Ficamos então com o entendimento de que
todos estamos sujeitos a sermos tomados pelo nosso lado malévolo, mas
que dentro de nós mesmos se encontra o controle para diminuir sua ação:
devemos resisti-lo, já que não é possível nos livrarmos totalmente. O
mau existe, faz parte de nosso ser e cabe a nós decidirmos o que fazer
com ele. É uma escolha particular.
Texto disponível no site:http://alimenteocerebro.com/smeagol-tenue-limite/